O Codex Seraphinianus e os juros nacionais.

por Renata Abalém

O que faz sentido para você? Em tempos de tanta diversidade, e da amplidão dos significados que essa palavra possui, eu nem sei mais o que faz sentido para mim, muito menos para os outros. É tanta novidade convivendo com a minha história pessoal, e tudo junto e misturado que às vezes me confundo. Mas confesso que muita coisa sem sentido exerce um certo poder de atração sobre mim. O que não faz sentido é instigante e personalíssimo. “O” que não faz sentido, um dia nos atinge a todos, sem distinção. A uns abate sem piedade, a outros, catapulta para o salto quântico. É a sorte que ora sorri, ora esmaga.

E nesse caminho do sem sentido, o Codex Seraphinianus é o maior exemplo da literatura mundial. O livro dá notícia de um mundo fantástico. É como um Almanaque, uma enciclopédia que fala sobre zoologia, botânica, etinografia, arquitetura, enfim, os mais variados assuntos, com um texto indecifrável e com mais de mil desenhos malucos feitos pelo arquiteto italiano Luigi Serafini. Tudo no Codex, à exceção de uma frase que mistura palavras em inglês e francês, também sem sentido, é absurdo. O mundo ali retratado só pertence ao seu inventor. Faz sentido pra ele e para ninguém mais, embora seja cultuado por gênios como Ítalo Calvino e Tim Burton.  

As ilustrações surreais são explicadas por um alfabeto inventado, num idioma que não existe, sem qualquer propósito aparente, até porque não pode ser lido. Durante anos, linguistas do mundo inteiro tentaram decifrar o alfabeto utilizado no Seraphinianus, sem êxito algum. Paira uma certa “aura de mistério” sobre a ausência de sentido do livro, até porque ele é mais que uma distopia. Já imaginaram? Estudiosos conseguem ler hieróglifos de mais de 3.000 anos antes de Cristo, mas não conseguem entender o que significam todos aqueles desenhos interessantes e letras rebuscadas… É o exemplo da Babel moderna.

Voltando os olhos para as coisas sem sentido que acontecem no Brasil, a Crefisa foi condenada, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a reduzir a taxa de juros em empréstimos pessoais que contratou com consumidores. O motivo? Os juros contratados ultrapassaram 900% ao ano. Ainda em grau de recurso, a empresa argumentou que “os juros cobrados estão de acordo com a média de mercado para o perfil de alto risco dos consumidores”.

Mas a completa falta de sentido reside no fato de que embora tenhamos uma “senhora”legislação consumerista, ainda estamos reféns  de regras claras para o sistema bancário e de oferta de crédito. Näo sei se você sabe, mas de acordo com pesquisa recente da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas e do SPC-Brasil, cerca de 60 milhões de brasileiros estão endividados. Destes, mais de 30 milhões estão superendividados, ou seja, são consumidores que não conseguem pagar as suas dívidas sem comprometer o mínimo existencial. Uma situação de calamidade e penúria. Eu pessoalmente atendi uma consumidora de mais de 40 anos de idade, funcionária pública concursada com curso superior, cujo salário é acima da média e que, ao descontar suas dívidas mensais, subsistia com apenas R$ 12,00 (doze reais) por mês. Ao ser questionada sobre a razão da dívida milionária, ela não soube explicar o que a fez dever tanto a ponto de comprometer todo seu salário.

Esse cenário que combina oferta de crédito com juros altos, publicidade abusiva, ausência de educação financeira e de políticas públicas efetivas, está levando o brasileiro a uma vida financeira completamente sem sentido.Repito: 30 milhões de consumidores enfrentam essa realidade diária, compromentendo a sua dignidade pessoal, cuja proteção é fundamento da Constituição da República. Isso é mais que um capítulo absurdo da nossa história. Isso é um livro inteiro de aberrações, onde os contratos são indecifráveis e os consumidores seres de um mundo irreal. [/justify]